23 de março de 2007


DR no Saint Honoré

Entrei ontem na terceira fase da minha relação com o Le Saint Honoré. Ops, quero dizer, L'Etoile. A vida mudou e o restaurante do hotel Le Meridien, agora Iberostar Copacabana, também. Ontem fui ver a quanto andava meu velho caso, agora de nome novo.

Tudo começou numa longínqua década de 90. Acastelado no topo daquele hotelão, o restaurante representava pra mim o olimpo da gastronomia. Um reino de pratos maravilhosos, códigos de etiqueta misteriosos, executivos em negociações milionárias, comemorações de casais apaixonados, menus de muitos cifrões e o som de um velho piano ao fundo.

Hoje, muitas jornadas culinárias depois, pouco restou desse sonho inocente. Sei que a alta gastronomia muitas vezes perde pra carne assada da minha empregada, que os casais à mesa nem sempre têm o que dizer, que executivos bochecham vinho e não se divertem e o pianista... bem, pianista de hotel toca Whitney Houston e a trilha do Fantasma da Ópera.

Entre esses dois momentos, algumas águas rolaram.

Minha primeira vez não foi das mais impactantes. Era tempo de Pierre Landry na cozinha. Tempo em que um cardápio como o do Saint Honoré me parecia um alfabeto secreto, que eu lia com temor religioso. Os salões, porém, não eram nada parecidos com o que minha imaginação construíra. Pareciam servir de cenário para um enredo sobre alta burguesia decadente, com mesas grandes demais, espaçadas, de toalhas pálidas e iluminação feia. Era tristonho.

O vigor da cozinha estava numa fase transitória. Tinha se diluído desde os tempos em que Paul Bocuse chegou com a gastronomia francesa de ponta, inédita no Rio, e depois passou o bastão para Laurent Suaudeau. Os dois orquestraram o auge daquela cozinha.

Laurent tentou educar o público carioca com uma gastronomia que tirava o máximo dos ingredientes frescos locais, como ele conta em seu belo livro "Cartas a um jovem chef". Lá, penou com uma clientela que estava acostumada a um pastiche de cozinha francesa. Quando experimentou implantar o pato ao tucupi, por exemplo, teve que disfarçar o nome do prato paraense para ludibriar gente ainda presa ao pato com laranja. O Pará não era chique.

Meu verdadeiro encontro com o Le Saint veio na (di)gestão de Dominique Oudin. O sotaque carregadô e a timidez do chef não favoreceram uma intimidade imediata. Mas a comida falou mais que nós dois juntos. Oudin era jovem - ainda é - e dono de uma pretensão suave. Pretendia fazer boa cozinha, mas sem a empáfia e arbitrariedade de outros chefs. Nunca vou me esquecer do siri mole que comi por lá, que ele serviu como se fosse dos mais corriqueiros. Uma epifania gustativa.

Só faltava que o ambiente fosse tão light quanto o ego do chef, o que só aconteceu em 2004. A reforma foi um sopro contemporâneo mais que necessário. Deixou as mesas e cadeiras mais leves, os talheres e louças menos pomposos, trouxe cor para as paredes e enxotou a Whitney Houston da trilha sonora. Enquanto isso, vieram festivais de queijos franceses, marias moles, caju com foie gras e filé de filhote. O romance estava no auge.

Quando tudo parecia caminhar para o casório, eis que chegam os capitalistas. Este ano, o hotel foi vendido e os novos donos espanhóis anunciaram o fim do Le Saint Honoré. Fiquei inconsolável. Para mim, fazia tanto sentido quanto destruir uma catedral para construir no lugar um shopping center. Quase peguei em coquetéis molotov quando soube que o restaurante, espanhol, teria nome francês. Coisas de marketês.

L'Etoile e eu nos conhecemos ontem. No look, ele estava igual. O cardápio, nem tanto. Agora, é levemente mediterrâneo, embora seu perfil ainda não esteja consolidado. Só terá sua cara definitiva depois de escolhido o consultor, que deverá ser um espanhol de peso, para representar a Espanha como Bocuse um dia representou a França. Lá pelo meio do ano, entra em obra com o resto do hotel. Mas não deve haver grandes modificações no décor, digo, decoración.

Por enquanto, a cozinha está nas mãos de Ana Ribeiro, que foi braço direito, esquerdo e quem sabe clavícula de Oudin. Ana é o lado mais bacana dessas mudanças, o triunfo do talento sobre o preconceito. Quer a prova? Então diga aí uma outra mulher negra chef de grande restaurante no Rio. Pois é, não tem.

Ana preparou: brocheta de atum vermelho em fricassê; salada de cavaquinha com ragout de aspargos e sorbet de tomate; carré de cordeiro em crosta de cevada e mousse de pesto e sopa gelada de manga com sorvete de arroz doce. Com exceção da primeira entrada, para mim insossa, tudo ótimo. E um sabor para catalogar na memória afetiva do Le Saint Honoré (ou melhor, L'Etoile): o sorvete de arroz doce.

O pianista voltou, tocando Richard Marx ("Wherever you go/Whatever you do/I will be riiiiiight here waaaating for you"). Ainda assim nem tudo estava acabado entre nós.

16 de março de 2007


Em revista: A Polonesa

Faça o teste: leve seu amigo foodie para passar umas horinhas na Polonesa, em Copacabana. O primeiro susto virá logo na entrada. Ele vai pensar que saiu da máquina do tempo direto para uma taberna ancestral, com garçons levemente trolls, paredes texturizadas, quadros com paisagens típicas e - o horror, o horror - cardápio com preços manuscritos.

Encomende um gole de vodka para acalmar os ânimos. E parta para a segunda parte da experiência, que consiste em mediar uma conversa gastronômica entre seu amigo e o atendente. Deixe que seu acompanhante fale de enogastronomia, harmonização vertical e picolés de salmão enquanto, discretamente, o garçom entra para pegar o tacape. Desacordado, o foodie será arrastado pelos cabelos até o batente da porta. Acordará curado, em sua primeira manhã sem pensar em emulsões.

Último dos restaurantes bárbaros, a Polonesa também tem seus luxos: toalhas enviesadas sobre as mesas e palitos de dente à vontade. Lá não se fala de gastronomia. É o reino da comidaria, de molhos grossos (mas não grosseiros), porções para dividir e quentinhas ao fim. Um conceito - um quê, doutor? - que parece não ter mais lugar nestes tempos de culinária de chef. De fato, era o que aparentava quando chegamos, cedo, e encontramos o salão tristemente ocupado por uns poucos copacabanenses típicos.

Couvert ok, com fatias finas de pão e pasta de repolhinho. Como a fome era grande, rumamos para duas especialidades: estrogonofe e peixe com molho de raiz forte. Eis que chegam batatas coradas. Não era de vergonha, imagina. Gostosas que só, com beiradas quase queimadas, abriram meu já escancarado apetite. E toma peixe, com um consistente molho, levemente picante. Não era um pescado de primeiríssima, mas ao menos estava bem cozido. Provei também o estrogonofe, sem creme de leite, evidente. Filé macio, molho engrossado. Comidão.

Seríamos xingados em polonês se saíssemos de lá sem o suflê de chocolate. E assim fizemos. Pedimos o meio, que alimentaria toda uma viela do gueto de Varsóvia. O melhor da brincadeira é o que gruda no recipiente e vira uma casca crocante. De resto, falta chocolatência, na minha modesta opinião. Fomos embora a tempo de ver o salão lotado, com apenas um suave burburinho. Acho que estavam falando baixo para não serem descobertos. Pode pegar mal.

8 de março de 2007


Migalhas de reflexão

Passei no novo Gula Gula da Rua Henrique Dumont, em Ipanema, que está em soft opening. Very soft indeed. A porteira, muito educada, disse que infelizmente não haveria jantar porque estavam preparando a casa para o dia seguinte. Intrigante.

O restaurante fica em uma casa branca tombada, dos anos 40. Promete ser um dos mais charmosos da rede, que cresce vertiginosamente. Continua simpática, embora os preços tenham subido mais que deveriam. Meu prato da temporada: a taça de camarões, uma espécie de ceviche refrescante, acompanhada de tortillas. Perfeita para os dias sufocantes.

Com minha gula excedente, corri para a Piola logo ao lado, na Paul Redfern. A pizzaria italiana agrada aos olhos, com suas luminárias coloridas e paredes desenhadas. Nem tanto ao palato: a massa crua e molenga é indigna de uma boa pizza. Um forno mais quente resolveria. Lugar para aniversários e noites festivas, sem preocupações gastronômicas.

De sobremesa, fiquei pensando no fantasma da caveira de burro. Os donos de restaurantes dizem que ela não existe. E fazem muxoxo de quem afasta uma superstição. Mas como explicar aquela loja na esquina da Paul Redfern com Prudente de Morais? O lugar já foi creole (La Brise), arrojado (Z Contemporâneo) e borbulhante (Xampanheria), entre outras encarnações. Nada dá certo. Agora fica na penumbra, assustando quem passa. Buuuuuuuuuu...

5 de março de 2007

Ipe, urra, Mitsuba!




Homero Cassiano avisa: março é mês de aniversário do Mitsuba (lê-se Mitsubá). Aí você me pergunta: isso é de comer? É sim! Com três anos de vida, o restaurante japa ainda é injustamente pouco conhecido. Às vezes reflito sobre o porquê. E eu mesmo respondo.

Homero, o dono gente boa, apostou num restaurante de ótima cozinha num lugar improvável: a Rua São Francisco Xavier, na Tijuca. Nada contra os tijucanos. Mas o bairro, com exceção do Fiorino, não tem tradição de boa gastronomia. O Mitsuba, portanto, surge ali como um estrangeiro de fala esquista. Numa rua que, vamucombiná, não é das mais glamourosas.

Como quase todo bom japa, o Mitsuba tem ambiente simples, quase simplório. Não serve rodízio nem fusões da moda. Mas também não se fecha para a criatividade. O menu também traz uma caprichada seção de quentes, geralmente bom indício de um japa sério. Na Zona Sul, o restaurante provavelmente teria preços proibitivos.

Dois fatores classificam o Mitsuba para a pole position. A primeira é o frescor e variedade de seus frutos do mar. É só provar um de seus sushis e sashimis para perceber que eles servem tudo estalando de novo. Lá também é o lugar perfeito para levar aquele seu amigo que repete a frase "eu não gosto de peixe branco" como um mantra. Como não existe um peixe de nome "branco", sob o rótulo se escondem vários tipos de pescado. Nos rodízios da vida, você vai encontrar os ordinários. No Mitsuba, os extraordinários.

Outro diferencial é o efeito Eduardo Nakahara. O chef e sushiman da casa tem a introspecção e humildade típicas dos orientais. Porém não se engane: trata-se de um mestre. Quando Homero procurava um sushiman para seu restaurante, o badalado Nao Hara (do Shin Miura) recomendou Nakahara com fogos de artifício. Para quem duvida, basta experimentar seu menu degustação cheio de surpresinhas incomuns, uma viagem sensorial das melhores. Ou então delícias como o katsu roll, o enrolado com salmão, camarão, cream-cheese e nira, empanado com panko (farinha de rosca importada do Japão), acima na foto. Hot filadélfia pra que, mané?

Quando me deparo com um restaurante de trabalho bacana, quase idealista, entro pra a torcida. Sou do fã clube do Mitsuba, assim como do Suen e de outros tantos. Porque fazer cozinha sem se dobrar ao mau gosto, à cobrança extorsiva, às modas gastronômicas, à arrogância e aos caminhos fáceis não é pra qualquer um, não.



UPDATE: Fiquei sabendo que a degustação acabou. É uma pena. Agora restam os sushi ou combinados do chef, em que o cliente escolhe os sushi e sashimi que quer comer (inclusive uma cota de importados de acordo com o tamanho do prato) e paga em torno de R$ 2 por peça.

2 de março de 2007

Food for thought

Do estrelado chef catalão Santi Santamaría, sobre os gourmets:

"Pergunto-me se realmente a pessoa que vai a um restaurante com espírito crítico é feliz"

1 de março de 2007

B de Bazzar

O restaurante Bazzar rebatizou seu filhote, o B!. A versão mais informal da casa, presente nas lojas da Livraria da Travessa em Ipanema, no Shopping Leblon e no Centro, passa agora a se chamar Bazzar Café. A intenção é associar a rede à linha de produtos gourmet Bazzar Especialidades, à venda nos supermercados Zona Sul. O cardápio não sofrerá modificações. O sanduíche de falafel, portanto, está a salvo.



Em revista: Le Blé Noir

Na minha primeira incursão ao Le Blé Noir, pensei ter encontrado alguma técnica avançada de marketing. Algo parecido com a estratégia do Studio 54, lendária boate novaiorquina que já na noite de inauguração deixou um monte de gente do lado de fora para atiçar a curiosidade sobre o que rolava lá dentro.

Meu début foi há alguns anos. Eu e dois amigos chegamos à porta da creperia de Copacabana enquanto um outro seguia para nos encontrar. Topamos com uma pequena fila e uma senhora com cara de poucos amigos. Perguntou quantos éramos.

- Quatro, um ainda está a caminho.

- Então não pode.

- Como assim não pode?

- Só deixamos entrar grupos completos. Quando ele chegar vocês podem entrar na fila.

E sumiu na penumbra do salão. Eu, que nunca tinha visto daquilo, imaginei que ela voltaria com uma palmatória. Mas a hostess com estágio na S.S. retornou ao posto sem nos dirigir palavra. Usei um dos meus mandamentos irrevogáveis - o que diz "não piso onde não sou bem recebido" - para jurar ódio eterno ao restaurantezinho (com desprezo, por favor) francês.

Uma amiga, também barrada com igual grosseria, me deu razão. Ela sustenta que, enquanto figuras como Claude Troisgros e Olivier Cozan representam o melhor da personalidade dos franceses, ao Le Blé Noir caberia o pior: a arrogância e a altivez. Se de um lado alguns chefs acariocam-se, outros se apegam a idiossincrasias incompatíveis com a cidade. Exigir que todos cheguem juntos à casa, sem permitir um mísero retardatário, seria como pedir informações em mandarim nas ruas da Venezuela.

Prefiro achar que é marketing. E dos bons. Porque essa curiosidade sobre o que se passa a portas fechadas - ainda mais naquela penumbra misteriosa - me levou de volta ontem. Ou então foi saudade do meu amigo demi-francês Patrick, habitué da creperia, que anda pela Europa. Mais uma vez diante daquela portinha, tremi.

- Então vocês não têm reserva - constatou a recepcionista, que já era outra, em tom de suspeita.

Mesmo sem aviso prévio passamos pela inspetora. Ufa! Assim começou uma noite de delícias.

A casa é pequena, com mesas igualmente reduzidas. Das velas espalhadas pelo salão aos toques rústicos da decoração - mosaicos florais nas mesas e desenhos coloridos em quadrinhos nas paredes - tudo favorece a intimidade. O público reflete esse clima: casais de namorados, famílias sem crianças e amigos de anos.

A especialidade da cozinha comandada por Alain Caro são os crepes da Bretanha, feitos com trigo-mourisco (ou sarraceno), o tal blé noir também muito apreciado pelos russos. No menu, são várias opções de recheios, algumas inventivas como o de figo caramelizado no vinho do Porto e baunilha, queijo de cabra, presunto cru e farofa de nozes e outras mais tradicionais.

Escolhi uma combinação mais careta, a de champignons de Paris com brique (queijo de cabra mais suave que variedades como o feta e o pecorino). O prato chegou à mesa exalando um aroma poderoso, de nozes e queijo mofado, escoltado por uma salada com molho de mostarda Dijon. Na primeira garfada, o silêncio. Que mérrevilha!

Crepe que é crepe não tem massa molenga, de panqueca. Chez Michou? Nem pensar. Deve ter textura crocante como uma lasca queimadinha que gruda na panela. No Blé Noir é assim. Sem exagero de massa e com um sabor campesino, de comida da terra. Com uma cidra ao lado - legítima, não o refrigerante Cereser - o jantar correu macio. Ainda teve um crepe de pêras com chocolate pra arrematar.

Os preços não são muito convidativos. Vão da casa dos 30 reais a uns 40 e tantos. No mundo ideal, seriam mais acessíveis, afinal, não se trata de comida de gala. Mas, pela qualidade dos ingredientes, estão perdoados.

Foi assim que acabei me rendendo ao colonizador europeu. Tomara que no futuro eu consiga engolir de novo meu orgulho antes de mastigar aquelas maravilhas.